As reminiscências da guerra
por VALENTINO VIEGAS*(In "Boletim da Casa de Goa" , de Novº. e Dezº./2016)
Todos os anos, em especial nos meses de Maio e Junho, homens
de idade avançada com os cabelos esbranquiçados, muitas vezes acompanhados de
suas mulheres, filhos e netos, encontram- se num qualquer restaurante do País,
previamente escolhido, cumprimentam-se efusivamente e abraçam-se de uma forma
tão forte e tão calorosa que causa surpresa e espanto a quem presencia estas
impressionantes manifestações de afecto. Embora custe a acreditar e por mais incrível que isso hoje possa parecer, de facto, foi a guerra colonial que os uniu.
Há cerca de cinquenta anos, mais dispersos pelas vilas e aldeias nortenhas do que pelas cidades deste país mais ocidental da Europa, cada qual vivia virado para si próprio, desfrutando os doces anos da juventude e reflectindo sobre a melhor forma de realizar os seus sonhos mais prementes.
Obrigados a prestar o serviço militar, salvo raríssimas excepções de oferecimento voluntário, quando jovens haviam sido recrutados para garantir a presença portuguesa nas terras africanas e asiáticas, em nome de um Portugal uno e indivisível, multicultural e multirracial, que nascia no Ocidente, passava por África e ia terminar no Extremo Oriente. Foi no desempenho dessa ingente missão patriótica que desembarcaram por esse mundo fora em defesa do território nacional.
Exceptuando alguns mobilizados, mais bem informados e um tanto politizados, pois tinham uma visão diferente da dos líderes governamentais sobre a forma de encarar a guerra colonial por acreditarem que a sua solução só era possível através de negociações e nunca por via militar, todos os outros participavam nela sem verdadeiramente questionar nem pôr em causa a razão de ser da sua presença nos territórios ultramarinos.
Neste contexto, integrados na Companhia 785, Batalhão 786, em 1965 fomos mobilizados para combater no Norte de Angola.
Os dois anos de intensa actividade operacional ali desenvolvida criaram em nós laços de forte camaradagem que ainda hoje permanecem como se tivessem sido adquiridos e fossem alimentados de forma regular e metódica desde os mais tenros anos da doce infância.
Numa Angola de tamanho colossal vivíamos no Liberato, aquartelamento de dimensões exíguas, completamente isolados do resto do mundo. Salvo algumas cubatas onde se alojavam os bailundos, nativos deslocados do Sul do território angolano para o Norte em comissão de serviço para trabalhar no cultivo do café, e um único capataz metropolitano, tudo o resto se reduzia à presença da nossa Companhia 785, acomodada em quatro casinhas térreas, dois barracões de madeira cobertos de zinco, um refeitório também resguardado mas despido de paredes e uma cozinha com uma única parede completamente negra de fumo. Capim e mais capim, árvores frondosas e densas matas a perder de vista circundavam o nosso acantonamento por dezenas de quilómetros ao redor.
As espectaculares paisagens daquela riquíssima terra eram um permanente deleite para os nossos olhos embevecidos, não fora as especiais boas-vindas que nos reservavam os acoitados nos esconderijos da selva.
Aqueles que por lá se escondiam e nos atacavam, que tinham de se entregar ou deviam ser por nós eliminados, por serem considerados inimigos da Pátria lusitana, foram quem nos uniu e permitiu que se criassem entre nós laços de camaradagem e uma solidariedade tão activa e tão consistente que só quem por lá andou sabe calcular o seu real significado e dar-lhe o justo valor.
Nos nossos encontros anuais, não nos inquieta reviver os momentos de combate e de recordar que, quando as balas sibilavam por cima das nossas cabeças, podíamos contar com o apoio dos camaradas que nos acompanhavam. Eles davam uma confiança redobrada e uma segurança de tal ordem que nenhuma companhia de seguros jamais poderá cobrir.
Foi nessa argamassa feita com milhares de quilómetros calcorreados, com camuflados empapados de suor e embebidos de lágrimas, muitas vezes perseguidos em permanência pela ronda da morte, que foi moldada a amizade que nos une e a sã camaradagem de que tanto nos orgulhamos.
No último sábado do mês de Maio, uma vez mais, recordaremos em conjunto as vivências do passado, pois estou em crer que nenhum de nós consegue libertar - se da pele adicional que a guerra em nós depositou.
*Doutorado em História.
Com
os desejos de que apreciem o trabalho do camarada e Amigo, ex-Fur.Milº.,
Viegas,, envia a todos cordiais saudações o camarada,Botelho